Nós vivemos num mundo onde diversas histórias de quadrinhos – sejam elas de super heróis ou não – já foram adaptadas para o cinema e televisão. Algumas, como Outcast, foram criadas praticamente com a adaptação já em mente. Então pode parecer estranho que haja uma certa surpresa ao ver que Preacher, HQ seminal de Garth Ennis e Steve Dilon, finalmente sendo transportada para outra mídia. Mas tirando Sandman, de Neil Gaiman, poucas obras ficaram tanto tempo no vai/não vai como esta.
O texto abaixo contém spoilers do piloto de Preacher
Agora, a AMC estreou a série que vai mostrar a vida do Pastor Jesse Custer (Dominic Cooper). Um ex-criminoso que voltou para sua terra natal em Annville, no Texas, para cuidar da pequenina igreja local. De todas as pessoas que já tentaram fazer essa adaptação, acho que ninguém imaginava que a dupla de comédia Seth Rogen e Evan Goldbergseriam os que finalmente iam conseguir, e ainda por cima com esse grau de sucesso e qualidade. Preacher não está muito preocupado em seguir cada passo da HQ na qual é baseada, mas se mantém fiel ao espírito que torna a história especial.
O que Rogen e Goldberg fazem funciona tão bem aqui porque eles se preocupam, em primeiro lugar, com a missão de fazer uma boa série de TV. Para isso eles criam um senso de estilo tão confiante e vibrante, que acaba compensando pela falta de orçamento. O início, que mostra a entidade divina conhecida como “Gênesis” vindo para a Terra, parece ter saído de um filme de ficção científica dos anos 60, mas por alguma razão funciona. Isso continua ao longo de todo o piloto. A cena de luta de Tulipa (Ruth Negga) no carro tem uma péssima tela verde, mas a pancadaria é tão boa que é como se os diretores nem se importassem com os efeitos especiais. O mesmo acontece quando a personagem abate um helicóptero usando uma bazuca caseira. Por não mostrar isso acontecendo e nos manter na perspectiva da criança, o roteirista Sam Catlin (Breaking Bad) cria um humor e uma surpresa maior com a cena.
Mas estilo não é o suficiente. É preciso ter personagens, e, felizmente, Preacher acerta nisso, particularmente com o trio principal. Tulipa é apresentada no flashback que contém as cenas citadas acima, e Negga apresenta uma segurança e ousadia na atuação que nunca teve em Agents of SHIELD. Outra introdução fantástica, e que também acontece com uma luta, é a do vampiro Cassidy (Joseph Gilgun). E antes de mais nada precisamos dizer que Gilgun vai explodir se essa série der certo. Ele engole o papel com tudo e automaticamente rouba cada cena que participa. O ator se encaixa perfeitamente com o humor negro do personagem – alguém que pula de um avião sabendo que vai se estraçalhar no pouso, com tripas voando por aí, mas que não liga pois sabe que vai sobreviver – e eu imagino que ele logo vai se tornar o favorito das audiências.
Outros personagens recebem introduções menores, mas que também funcionam. O Xerife Hugo Root (W. Earl Brown) tem uma ótima oscilação de apreço e raiva com Jesse. Já o famigerado Cara de Cu (Ian Colletti) recebe uma cena que começa como algo de um filme de terror, mas que termina de uma forma inesperada. O roteiro de Catlin mantém o mesmo senso de direção e foco em todos esses momentos, e desenvolve bem cada uma destas pessoas ao longo dos 90 minutos do piloto. Algumas pessoas podem se sentir perdidas com isso, já que não há muita exposição e nem preocupação em tornar a série “acessível” (seja para novatos ou fãs do quadrinho). Preacher é o que é, e é difícil não ficar cativado pela confiança e certeza da equipe criativa.
Isso se mostra com mais clareza ainda quando falamos do protagonista da história. Jesse, ao contrário de Tulipa e Cassidy, tem uma apresentação mais lenta e rotineira (mas perfeitamente combinada com “Time of the Preacher,” de Willie Nelson). Ele não começa confiante, como o resto do elenco, e Cooper ilustra bem o quão mal encaixado Jesse está na igreja onde prega. Este Jesse não mostra o mesmo desprezo por Annville que a versão dos quadrinhos, ele até tenta ajudar por conta de uma promessa que fez ao pai, mas o seu coração está em outro lugar. Do trio principal, ele é o único com um claro arco de personagem, e a posição onde termina o episódio é o ponto de partida para o resto da história, mas isso não signifique ele não tenha o momento de se soltar. Isso acontece quando ele entra numa luta espetacular em um bar da cidade, a melhor até agora, e de longe a mais brutal.
Os elementos sobrenaturais são mais contidos aqui. Vemos a Gênesis procurando pastores ao redor do mundo antes de se encontrar com Jesse. Nenhum deles se encaixa bem, e todos – tanto o de uma pequena igreja cristã na África, quanto um sacerdote satanista, quanto (é sério) Tom Cruise num culto da cientologia – terminam explodindo em pedaços. Também vemos um pouco das regras de vampiro que vão operar em Cassidy. Ele pode ter o corpo mutilado e então comer um ser vivo (neste caso uma vaca) para se recuperar, e pode sair de dia, desde que não esteja em contato direto com a luz do sol. A escolha de Rogen, Goldberg e Catlin de tirar o pé do acelerador nestes elementos pode não agradar a todos, mas acredito que a decisão de entrar com calma neste lado da história foi a decisão correta. Eu também gostei muito de como os diretores usam o sobrenatural para pontuar o humor negro presente em todo o piloto, através de cenas como a de Cassidy depois de se jogar no avião ou, como mencionamos, com Tom Cruise explodindo.
A prova disso é que acontece quando vemos Jesse usando a “Palavra de Deus,” o poder de comandar as pessoas com sua voz que lhe é dado ao se encontrar com Gênesis (também é interessante notar que a entidade se comporta de forma diferente quando se depara com nosso pregador). Ele diz para um homem ser corajoso e abrir o coração para sua mãe, uma pessoa complicada. Ele faz isso, literalmente, e deixa o coração sangrento na frente dela enquanto morre. Ao terminar o piloto desta forma, juntando esta cena com Jesse decidindo que finalmente será um bom pastor, Preacher deixa claro que isso foi só o começo, e que há muito mais por vir.